Seguindo o Pied Piper: As reflexões sobre o contexto estudantil levantadas pelo BTS

Gabrielle Guimarães
11 min readSep 5, 2021

“Agora pare de nos assistir e vá estudar para os seus testes”
- Pied Piper (BTS, 2017)

Entrar para o fandom¹ do BTS é como cair no buraco do coelho em “Alice no País das Maravilhas”. Palavras, costumes, idioma, roupas, a música, muita coisa é diferente, mas de modo positivo . Em virtude desses aspectos, podemos perceber, assimilar e até incorporar muitas dessas práticas novas no nosso cotidiano, experienciando tudo o que é ser ARMY. Em virtude dessa influência do Bangtan, no dia a dia do fã, o objetivo desse texto é analisar e levantar reflexões sobre os questionamentos que o grupo expõe através das suas músicas e discursos acerca do sistema educacional.

Tentando compreender as letras, os vídeos e os demais discursos do Bangtan, por exemplo, muitos fãs passam a estudar o idioma coreano, inclusive com o “Learn! Korean with BTS”, conteúdo criado pela Big Hit Entertainment. Conteúdo o qual visa ensinar aos ARMYs e outras pessoas interessadas sobre a cultura, expressões e outros componentes do idioma coreano. Embora o BTS e a BigHit incentivem a educação, desde o começo do grupo, eles apontam as problemáticas da chamada “educação bancária”.

A educação bancária pode ser entendida como um ensino que é passado meramente do professor, enquanto detentor do conhecimento, para o aluno. O estudante deve “devolver” tal conhecimento, tal qual uma transação bancária. Segundo Brighente e Mesquida (2016), este modelo educacional nega o diálogo, tratando os alunos como “depósito de conhecimento”.

“Cansado do mesmo dia, os dias só se repetem
Os adultos e os meus pais
Continuam a insinuar sonhos forçados para mim”
- No More Dream (BTS, 2013)

A psicologia escolar teve um início que validava tais condutas excludentes. No entanto, com o tempo, percebeu-se que, no modo de funcionamento atual da sociedade, em defesa das diferenças individuais, o indivíduo é isolado de seu contexto e atribui-se ao aluno a culpa por suas dificuldades de aprendizagem (COUTINHO, OLIVEIRA, BARRETO, 2015). Para superar esse modelo cartesiano é preciso elaborar outra alternativa, sendo essa estratégia baseada em uma perspectiva histórica. Em relação ao contexto escolar, esse paradigma demonstra que o indivíduo é a junção de múltiplas determinações.

Um autor que, mesmo antes do BTS debutar, refletiu e escreveu sobre essa temática é Pierre Bourdieu. O Bangtan canta sobre as dificuldades de ser um estudante num país onde aprende-se conteúdos programáticos distantes da realidade e que, por esse motivo, causa desmotivação nos alunos. Os alunos que se adaptam e têm condições de focar nos estudos, ter aulas particulares etc. são recompensados, sob o argumento meritocrático. A escola era, e ainda é, um espaço onde via-se igualdade de oportunidades, meritocracia, justiça social, mas Bourdieu exibe a reprodução e legitimação das desigualdades sociais nos espaços educacionais (SANTOS, 2015).

“O que você sonhava em ser?
Quem é a pessoa que você vê no espelho?
Eu tenho que te dizer:
Siga o seu próprio caminho”
- No More Dream (BTS, 2013)

Jean Piaget ao estudar o desenvolvimento da criança, também criticava o sistema educacional tradicional. Segundo o teórico, os métodos de ensino devem se abrir cada vez mais à interdisciplinaridade e às necessidades do cotidiano. E, para isso, o ambiente de aprendizagem deve ser organizado com práticas educativas que estimulem o estudante a buscar a liberdade por si próprio e que possam redescobrir suas verdades (TREVISO, 2014). Durante sua jornada como pesquisador, Piaget buscou defender um ensino humanizado, no qual o indivíduo teria a liberdade de escolher a melhor maneira de aprender e elaborar seus próprios pensamentos e caminhos.

Partindo desse ponto, podemos fazer uma comparação com o trecho da música ‘No More Dream’ citado acima, em que o BTS motiva as pessoas a seguirem seus próprios caminhos, baseados em suas verdades.

“Lance rápido uma bola na perda de tempo que são as sessões de estudo noturnas
Rebele-se contra a sociedade infernal”

- No More Dream (BTS, 2013)

Ainda em ‘No More Dream’, eles falam sobre como existem altos níveis de competição entre os alunos coreanos, fazendo com que os perdedores sintam-se culpados. A pensadora Lee Ji Young, autora do livro “BTS, Art Revolution” (2019) afirma que todo mundo é automaticamente um “perdedor” nesse sistema, exceto os “colheres de ouro”² . O Bangtan continua sua crítica a esse sistema escolar em sua faixa N.O’., na qual aborda, em um trecho, a competitividade existente na escola e sobre os métodos de ensino que levam os estudantes a serem “máquinas de estudos”.

“Quem nos faz uma máquina de estudos?
Você é o número um ou um fracasso
Adultos fizeram esta moldura e nós caímos nela
Nós pensamos sobre isso, mas simplesmente
Estamos em cima até mesmo dos nossos amigos mais chegados
De quem é a culpa Isso é o quê?”

- N.O (BTS, 2013)

Como dito, os sujeitos são multideterminados, portanto, os fatores históricos, sociais, culturais, políticos e econômicos articulam-se, colocando os jovens menos abastados num patamar de desigualdade durante o processo de escolarização (COUTINHO, OLIVEIRA, BARRETO, 2015). O fato de o BTS incentivar e fazer parte da luta contra essas opressões e do processo de tornar-se “o principal perfil da sua vida que sempre foi deixada de lado” traz uma revolução no modo de entender e inserir-se na educação.

Vargas (2020) propõe uma reflexão sobre o impacto do BTS na educação. Segundo ela, boa parte da relação entre os sujeitos e a educação está intimamente ligada à forma como ela é ofertada ou apresentada. A forma como o BTS apresenta conhecimento é transformadora. Não trata-se apenas de fazer música, mas de trazer uma mensagem para o ouvinte em cada letra, seja fazendo uma crítica social, seja motivando a pessoa a amar-se, desafiar-se e sonhar, porque amar a si é, afinal, transformador.

O fato de que os próprios integrantes do BTS terem crescido num contexto social onde o sistema escolar é bastante opressor torna ainda mais interessante a maneira como eles motivam seus fãs a estudarem. Em seu discurso para a 73ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em 2018, Namjoon relata um momento de sua vida em que se viu preso em padrões que são impostos pela sociedade e encontrou na música uma forma de despertar-se para seguir o seu verdadeiro sonho.

[…] comecei a me preocupar com o que as pessoas pensavam de mim, e comecei a me enxergar pelos olhos delas. Eu parei de olhar para o céu, para as estrelas… Parei de sonhar acordado e, em vez disso, comecei a tentar me encaixar nos moldes que outras pessoas faziam. Logo, [também] comecei a calar minha própria voz e a ouvir as vozes de outros. Ninguém chamava meu nome, nem eu mesmo; meu coração parou e meus olhos se fecharam. Então, dessa maneira, eu, todos nós, perdemos nossos nomes. Nos tornamos fantasmas. Mas eu tinha um santuário, e era música. Havia uma voz dentro de mim que dizia ‘acorda cara, escute a si mesmo’. (RM, Discurso na 73ª Assembleia Geral da ONU)

Esse tema também é explorado em músicas como ‘N.O’, contudo, durante todos os álbuns, o grupo apresenta músicas sobre expressão de identidades e denúncia de estruturas opressivas. Vargas (2020) diz que, para Paulo Freire, o dever de quem propõe-se a empenhar-se na educação de alguma forma é possibilitar a criação ou a produção de conhecimentos de forma coletiva. Isso perpassa a ‘School Trilogy’, a era ‘Wings’ e a ‘Love Yourself’ e também durante ‘Map of the soul — Persona’.

“Ei você, qual é o seu sonho?”
- No More Dream (BTS, 2013)

“Onde está a sua alma?
Onde está o seu sonho?”
- Intro: Persona (BTS, 2019)

Sendo assim, as músicas deles contêm narrativas pessoais e que os conectam conosco, por isso que não é apenas o BTS que sugere e promove mudanças na produção e compartilhamento de conhecimentos, o ARMY também o faz. Em um nível macro, busca-se mudar as práticas culturais, Souza (2018) aponta que a exposição de práticas culturais negativas pela arte, como a música, visa alterar as práticas comportamentais de um indivíduo ou sociedade. A partir de mudanças individuais, leva-se tais práticas para o coletivo e, dessa forma, altera-se também a cultura como um todo.

No entanto, mudar uma cultura não acontece instantaneamente, e ser responsável por tais mudanças também não é tão simples. No âmbito da educação, ser um ARMY acadêmico, por exemplo, é algo emergente e em construção.

Nossos idols se tornam nossos objetos de estudo, porém, ser fã de um grupo musical muitas vezes está associado à infantilidade e ao gênero feminino. Dessa maneira, estudar o BTS pode trazer inseguranças tanto devido às crenças limitantes que adquirimos ao longo da história de vida, devido à marginalização desses estudos, que podem até mesmo ser considerados irrelevantes.

Entretanto, o BTS ensina a resistir e a encarar desafios de cabeça erguida, até porque eles mesmos já passaram por situações semelhantes. As mensagens do grupo causam no fandom uma certa organização, trazendo sentimentos de pertencimento e interações que permitem compartilhar suas mensagens (SILVA et al., 2020; BHANDARI, 2020). Portanto, o ARMY, mesmo com as tentativas de desvalorização, age para espalhar conteúdo científico sobre o grupo e os próprios fãs.

Com isso, Lee (2019) afirma que os fãs tornam-se divulgadores e educadores do trabalho do grupo. Desenvolve-se, assim, habilidades de análise e profundidade acadêmica, abrangendo diversas atividades que vão tomando espaço tanto nos meios profissionais quanto nos acadêmicos. Vargas (2020) cita as ações realizadas nessas áreas.

Publicações independentes de livros e monografias sobre o grupo estão crescendo, embora a maioria ainda seja em inglês ou em outros idiomas. Revistas acadêmicas sobre BTS e ARMY como a Rhizome Connect e conferências interdisciplinares, como a ocorrida na universidade de Kingston na Inglaterra, em janeiro de 2019, também são experiências proporcionadas de fã para fã que estão tornando-se comuns. Sendo esses alguns exemplos que fomentam a leitura, a escrita, a difusão entre culturas e línguas, e a participação ativa na sociedade (VARGAS, 2020).

A importância que o BTS dá para a educação e o acesso ao conhecimento é notada através dos projetos realizados pelo grupo e pela Big Hit Entertainment, empresa que gerencia-os. Um desses projetos foi o “CONNECT, BTS” lançado em 2020, voltado para a Arte. Tendo como intuito de conectar a arte ao mundo, esse projeto foi realizado em cinco países de diferentes continentes com objetivo de “redefinir as relações entre a arte e a música, o material e o imaterial, os artistas e suas audiências, os artistas com outros artistas e a teoria com a prática” como o site oficial do projeto descreve.

Assim como o BTS é engajado em projetos que promovem conhecimento, o ARMY também cria conteúdos que estimulam a educação e levam conhecimento em diversas áreas.

Vargas ainda ressalta que as mensagens do Bangtan, através da música, desde o início foram voltadas para causas sociais, quebras de padrões e estereótipos que impactam diversos aspectos da sociedade (VARGAS, 2020). O BTS continua incentivando seus fãs a usarem seus nomes, correrem atrás dos seus sonhos e a participarem ativamente de projetos que possam transformar o mundo. No discurso para o “Dear Class of 2020”, por exemplo, SUGA incentiva a não terem medo durante sua jornada e J-Hope, ciente das dificuldades e dúvidas que o ARMY encontrará na vida, motiva-os a seguirem em frente mesmo quando cometerem erros.

“No futuro, quero ver seus sonhos, quadros e infinitas possibilidades. Desencanem do que não conseguem controlar e foquem o que podem mudar.” (SUGA, Dear Class of 2020)

“Vocês vão questionar suas decisões, seja o curso da faculdade ou profissão, se fizeram a escolha certa, se estão indo bem ou se estão fracassando. Quando fizerem isso, lembrem-se: vocês são os líderes da sua vida.” (J-hope, Dear Class of 2020)

Observa-se que, uma vez que o BTS mostra como modificar aspectos da educação e ciência, o ARMY passa a inspirar uns aos outros também. Um dos principais conceitos de Deleuze e Guattari (1995) é o de rizoma. Rizoma inclui sistemas sem centralizações, portanto, todos estão no mesmo nível e podem compartilhar entre si seus saberes, atingindo diversas pessoas. ARMYs, então, mostra um projeto de como seria a educação interdisciplinar de Piaget e com equidade de oportunidades da qual Bourdieu defende.

Diante disso, podemos afirmar que a influência do BTS no contexto educacional é revolucionária e prova cada vez mais o quanto é necessário ter uma educação humanizada, opondo-se à competição e às opressões existentes nos sistemas de educação tradicionais. Além disso, é notável que o BTS e ARMY têm quebrado barreiras, incentivado uma maneira diferente de enxergar o mundo. E têm alcançado grande visibilidade com suas mensagens transformadoras, levando milhares de pessoas a estudarem o Bangtan no contexto acadêmico, gerando resultados significativos no campo de pesquisa.

Texto também publicado no B-Armys Acadêmicas
Co-autoria:
Alicia Mesquita
Revisado por: Helmer Marra e Mariana Mathias

Referências

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Gabrielle Guimarães

23 anos, psicóloga, escritora e fã de cultura asiática.